Fabiano Santos
É importante que o governo, partidos aliados, assim como seus principais contendores definam o que percebem como sendo a agenda mais promissora para o país
O programa Bolsa Família do governo federal completa 10 anos de existência. A marcar a data, além de evento de vulto organizado pela própria Presidência da República, duas contribuições importantes no âmbito das ciências sociais: os livros Vozes do Bolsa Família, de autoria da socióloga Walquiria Domingues Leão e O Bolsa Família e a social-democracia, escrito pela cientista política e jornalista Débora Thomé.
O primeiro inscreve sua pesquisa na tradição de se ouvir a clientela beneficiada ou atingida por uma política pública e enfatiza as mudanças ocorridas no imaginário deste segmento da população no que tange suas relações com o estado e o setor público. O segundo contextualiza o programa no seio das disputas eleitorais entre partidos de orientação mais à esquerda versus partidos de persuasão conservadora ou neoliberal. Constata um forte efeito de desmercantilização de famílias situadas nos extratos de renda mais baixos, aproximando o Programa, assim, das experiências social democratas europeias do pós segunda-guerra, experiências nas quais o aprofundamento das premissas do estado de bem estar promoveu inflexão relevante no perfil da distribuição da renda e da riqueza nos países daquele continente.
Os dois livros, embora partindo de abordagens e metodologias distintas, possuem, em comum, a aposta na dimensão política como sendo talvez a mais fundamental consequência do Programa. Dimensão que se revela com nitidez em dois traços essenciais da política brasileira contemporânea, a saber: que a pobreza e a miséria não são estados impostos pelo destino ou pela vontade divina, mas sim condição inaceitável que exige pronta e eficiente resposta do setor público; e, que políticas públicas visando o equacionamento do problema da exclusão e da pobreza têm peso eleitoral decisivo. Nenhum partido, nenhuma candidatura com reais condições de competição em pleitos majoritários no Brasil hoje pode sustentar que o Programa não passa de uma esmola, focada nos pobres tendo em vista auferir dividendos eleitorais, uma espécie de compra dos votos dos pobres e miseráveis brasileiros. A opinião existe, é razoavelmente disseminada em círculos da elite, à direita e às vezes à esquerda, mas não alcança o discurso dos principais candidatos de oposição.
O forte componente eleitoral do Programa, assim como a pouca relevância de questões doutrinárias, aliás, são outras duas características relevantes a aproximá-lo das experiências europeias do estado de bem estar. Desde seus primórdios, no nascimento das primeiras medidas de proteção ao trabalho, aos idosos e inválidos, a disputa política entre liberais e conservadores já empolgava defensores e críticos da atuação do estado na economia e na questão social. O espectro de uma classe operária revolucionária, ademais, sempre orientou a atuação das elites na aprovação de medidas de alívio das condições extremas de exclusão e privação.
O pós segunda-guerra, contudo, marcou fundamental inflexão nas políticas de welfare, já agora impulsionadas por décadas acumuladas de passagem de partidos socialistas e de esquerda, em sentido mais amplo, pelos governos e parlamentos de diversos países. O mote passou a ser não mais a aprovação de medidas tópicas de proteção aos trabalhadores, mas sim uma ampla alteração nos fundamentos da intervenção do estado na economia de forma a reconfigurar o padrão de distribuição dos benefícios da acumulação capitalista e da propriedade.
Desmercantilizar, isto é, reduzir drasticamente a dependência das famílias às idas e vindas do mercado de trabalho e do ciclo de negócios passou a ser a palavra chave da luta dos socialistas na Europa. A extensão com que foi montado o estado de bem estar e o alcance do keynesianismo dependeram em cada país de vários fatores, sendo políticas específicas nas áreas do emprego, educação, saúde e habitação, vetores resultantes de diversas variáveis, políticas, econômicas e societais. Uma vez geradas, todavia, e seus efeitos redistributivos produzidos, a ancoragem eleitoral foi sempre a garantia da manutenção de patamares civilizados de desigualdade e índices ínfimos de pobreza.
Não é o caso de se discutir aqui o aparente declínio dos fundamentos do socialismo europeu. A discussão é relevante e será objeto de intervenções posteriores. Por ora, trata-se de enfatizar o fato de que sempre existiu um vínculo entre a presença decisiva do estado no combate á pobreza e à desigualdade, por um lado, e o fator voto popular como mecanismo de legitimação e assunção de grupos e partidos ao poder e ocupação dos governos. A versão sul-americana mais evidente de tal agenda é o Programa Bolsa Família. Por óbvio, trata-se de um início e que uma vez instalado, diversos e cruciais desafios precisam ser enfrentados no sentido de se alcançar indicadores sociais mais compatíveis com uma economia em modernização acelerada como é o caso da brasileira.
Crucial neste momento a promoção de políticas de inclusão e treinamento das primeiras gerações de jovens beneficiados pelo programa. Serão estes encaminhados para o ensino superior, na busca de um diploma universitário, ou buscarão cursos de formação técnica, visando perfil mais especializado? Optarão pelo PRO-UNI/REUNI ou pelo PRONATEC? Uma distribuição mais uniforme pelos dois modelos? Desde logo, é importante que o governo, partidos aliados, assim como seus principais contendores definam o que percebem como sendo a agenda mais factível e promissora para o país. Do lado do eleitorado popular e mais à esquerda, assim parece, a opção será por aquela que com mais clareza vier a representar a agenda do desenvolvimento com desmercantilização.
Fonte: Carta Maior
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