Segregar transporte público é sugerir, como outrora, que mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela dos homens… por Marília Moschkovich — publicado 22/10/2013
No Rio de Janeiro já funciona há 7 anos, no metrô, um vagão exclusivo para mulheres. Desde o meio deste ano, o metrô do DF adotou a mesma medida e um projeto de lei tramita no estado de São Paulo para que o mesmo seja feito. O “vagão rosa”, como é conhecido em alguns lugares, já foi implementado no Japão, Egito, Índia, Irã, Indonésia, Filipinas, México, Malásia e em Dubai. Geralmente funcionam assim: nos horários de pico apenas ou prioritariamente mulheres podem ocupar o espaço do vagão. Isso garantiria, a princípio, que não fossem assediadas nos trens.
O fato de apenas países de cultura sabidamente machista terem implementado esse tipo de política pública não é uma coincidência. Observando um pouco mais de perto a questão, fica claro que além de não resolver nada e reforçar a heteronormatividade e o próprio machismo, os vagões exclusivos ainda fomentam uma outra forma de opressão de gênero. Acompanhem meu raciocínio.
Assédio, em todos os níveis
Quem nunca viveu ou viu uma situação de assédio em transporte público lotado? Em geral os assediadores aproveitam-se da superlotação dos trens para agir. Na cabeça dessas criaturas bizarras, as mulheres são corpos disponíveis, que existem no mundo para agradá-los. Essa é a faceta mais perversa do machismo estrutural, reproduzida e reforçada por homens que muitas vezes, na melhor das intenções, se dizem feministas: a ideia de que eles podem pautar o corpo e o comportamento das mulheres de alguma forma. Esse princípio está por trás de textos machistas do escritor Xico Sá, de versos de Vinicius de Moraes, mas também orienta ações como a de estupradores e assediadores (físicos e verbais) em todos os dias de nossas vidas.
Recentemente a força que esse princípio tem na cultura brasileira ficou evidente, quando os resultados da campanha “Chega de Fiu-Fiu”, do blog ThinkOlga, foram divulgados. Houve muita resistência de diversos homens em aceitar que aquela cantadinha que parece inofensiva acaba limitando a liberdade das mulheres de andarem como quiserem, por onde quiserem, na hora que quiserem. A grande maioria se recusa ainda a entender que nós mulheres não queremos sua opinião sobre como nos vestimos, sobre nossa aparência física, exceto em alguns contextos muito específicos. Quer dizer: novamente, as mulheres existem para os homens, na cabeça de tais espíritos sem luz.
O assédio é frequente, em diversos níveis. Qualquer mulher sabe disso, na pele. Então por que uma medida que (em tese) visa combater o assédio é mal-vista por tantas feministas? As feministas endoidaram de vez?
Os problemas da política dos vagões exclusivos
Para o azar de quem nos odeia, nós feministas ainda não perdemos de vez o bom senso. Vejam só: ao propor a separação de homens e mulheres como solução para o assédio, a política dos vagões exclusivos pressupõe três coisas – e é nessas três coisas que reside a opressão de gênero da questão.
Em primeiro lugar, os vagões exclusivos culpabilizam as mulheres pelo próprio assédio. A questão é abordada como se elas fossem o problema da coisa toda. Essa pressuposição fica clara na ideia de que as mulheres devem ser separadas da “população normal” (ou seja: homens; vejam lá Simone de Beauvoir com seu Segundo Sexo). Separar as mulheres – que são em geral as vítimas da agressão – significa dar liberdade aos algozes.
Quer dizer, os homens que assediam podem continuar assediando em outros espaços, sem que isso tenha nenhum tipo de punição. São comuns os relatos de recusa da segurança do metrô – e das polícias civil e militar – em tomar providências em casos de assédio. Muito comuns. Não é preciso ser nenhum gênio para encontrá-los no bom e velho Google (fica a dica).
Ao mesmo tempo as mulheres, que sofrem as agressões, são confinadas a um espaço limitado. Quer dizer: além dos assédios que limitam nossa liberdade, as políticas públicas que deveriam combatê-los fazem o mesmo. Não faz o menor sentido, não tem a menor lógica. Para sermos livres precisamos ser menos livres – é isso, mesmo?
Esse tipo de inversão cruel e bizarra acontece em várias outras situações de culpabilização das mulheres. Nas sociedades de cultura machista como a nossa, as mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela sexualidade dos homens também. Assim, quando sofrem agressões, a solução é limitar, fiscalizar e controlar o corpo e as atitudes delas. Jamais o comportamento dos homens.
Daqui derivamos mais uma pressuposição problemática das políticas de vagões exclusivos: a de que seria natural dos homens não se controlarem sexualmente. Essa pressuposição é problemática em todos os níveis possíveis. Pra começo de conversa, porque trata o assédio e o estupro como se fossem parte do sexo, como se estivessem relacionados a desejo sexual e não a uma opressão e a uma questão de poder (três textos excelentes sobre isso, se você ainda não leu: no Biscate Social Club, na revista Fórum e no Bidê Brasil).
Além desse problemão, a proposta de segregar vagões nos diz que o fato de alguém “ser homem” (o que quer que isso queira dizer – falo brevemente disso em seguida) faz com que necessariamente vá assediar e estuprar mulheres. Não preciso dizer o quão irreal é essa suposição, certo? Há muitos homens que não estupram e um bom tanto que não assediam, nem o farão ao longo de sua vida. Só não arrisco dizer que são maioria ou minoria porque, de fato, não há dados estatística e sociologicamente confiáveis sobre isso (lembrando que ser condenado criminalmente por algo não significa que a pessoa realmente fez, nem que quem não foi condenado deixou de fazer).
Ainda mais fora da realidade do que isso, é a terceira suposição implícita nas políticas de vagões exclusivos para mulheres: a de que homens necessariamente têm desejo sexual por mulheres, e vice-versa. Chamamos essa pressuposição de “heteronormatividade”, e ela aparece também em vários outros contextos em nossa sociedade.
Separar as mulheres dos homens no transporte público, além de tudo que já mencionei, ainda reforça essa ideia retrógrada e surreal de que a heterossexualidade e heteroafetividade são o “normal”, o “natural”, e de que relacionamentos gays e lésbicos são exceção, aberração, etc. Ou seja, no fim das contas, políticas como essa do vagão exclusivo estão muito mais para Marco Feliciano do que para Simone de Beauvoir. Sacaram?
Ao criar esse vagões, assumimos que não haverá “desejo sexual” (ainda supondo que seja essa a questão do assédio – que, sabemos, não é) entre mulheres. Nem entre homens. Fingimos que também não existem vários tipos de assédio contra outras minorias no transporte público e no resto da sociedade brasileira (quem lembra de um adolescente que foi jogado de um trem por skinheads que encasquetaram que ele era gay, há uns anos atrás, em São Paulo?). Não vou nem me atrever a tocar na questão dos estupros corretivos a gays e lésbicas.
Dentro dessas minorias outras, talvez a que mais de ferre com essa separação dos vagões sejam os homens e mulheres trans*. Além dessas três suposições problemáticas das políticas de vagões exclusivos, então, temos mais um problema grave que elas alimentam: como definir quem é mulher e quem não é? Quem tem esse poder?
Na semana passada, uma mulher foi expulsa do vagão exclusivo no metrô do DF porque os seguranças do metrô “decidiram” que ela não era mulher. A definição dessa categoria – “mulher” – não é nada simples, e filósofas, antropólogas e militantes feministas de diversas áreas e profissões debatem exaustivamente a questão há décadas. Certamente na legislação dos vagões não há uma definição sequer sobre o que qualifica alguém de “mulher” e portanto dá acesso ao tal vagão exclusivo.
A classificação acaba sendo feita arbitrariamente pela aparência, portanto. Mas é a aparência que define se alguém é ou não é mulher? Definitivamente, não. O que define o gênero das pessoas é a identidade que cada um constrói para si com o passar dos anos. Dar aos seguranças do metrô o poder de definir quem é mulher, é retirar de cada um a possibilidade de viver sua identidade e sua expressão de gênero. É uma forma de dominação das mais abusivas e cruéis.
Sem nem entrar na discussão de que a identidade de gênero não precisa ser binária (homem ou mulher), e nem fixa para a vida toda, já temos bastante motivo ver que os vagões exclusivos são uma violência contra quaisquer pessoas que não sejam homens cissexuais, de aparência e comportamento lidos como suficientemente “masculinos”.
O vagão exclusivo para mulheres é, portanto, um retrocesso para as relações e opressões de gênero de todos os tipos, já tão consolidadas na cultura brasileira. Tudo o que não precisamos agora, enquanto tramitam o estatuto do nascituro e outros absurdos no Congresso, é de retrocesso.
Marília Moschkovich (@MariliaMoscou) é socióloga, militante feminista, jornalista iniciante e escritora; às segundas-feiras contribui com o Outras Palavrasna coluna Mulher Alternativa. Seu blog pessoal é www.mariliamoscou.com.br/blog.
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