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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

José Graziano: Justiça social para regular a saída da crise

A crise mundial exige respostas rápidas para recuperar a demanda e linhas de ação para substituir a desordem financeira por um ciclo de expansão, regulado pela justiça social.

Por José Graziano da Silva*, na agência IPS

Coordenar a transição de um ciclo de desenvolvimento para outro é uma das equações políticas mais difíceis da vida de uma sociedade. Lançada em janeiro de 2003 com o programa Fome Zero, a política de segurança alimentar do Brasil cumpriu esse papel ao unir sob um amplo guarda-chuva de ações (com ênfase na atenção urgente à fome) a recuperação do poder de compra do salário mínimo e a criação de empregos.

Ampliar o poder aquisitivo das famílias mais pobres, especialmente de seu gasto alimentar, mediante a transferência condicionada de renda e, de forma simultânea, promover reformas favoráveis à sua inserção produtiva foi o amálgama geral do programa. Essa combinação contribuiu para desarmar resistências, que não devem ser descuidadas ao se inaugurar um novo ciclo, obteve os resultados rápidos que a emergência social exigia, e alcançou legitimidade política em diferentes camadas da população.

O governo pôde, então, tomar iniciativas de caráter mais estrutural, dando autonomia progressiva às políticas setoriais, como o fomento à agricultura familiar, que fortaleceram as linhas de passagem para uma nova dinâmica de crescimento inclusivo. A coerência desta trajetória é exemplificada em alguns números: entre 2003 e 2010, a desnutrição infantil caiu 61%, o crédito para a agricultura familiar cresceu oito vezes e a renda das famílias do campo aumentou três vezes mais do que a média nacional, enquanto a pobreza rural diminuiu em 15%.

O que faz da experiência brasileira um marco inspirador não é apenas a abrangência e a rapidez dos resultados, mas é, sobretudo, a revelação de interações virtuosas entre o combate à fome e as novas dinâmicas de crescimento. Um exemplo é a demanda cativa anual de R$ 1 bilhão criada para a agricultura familiar pela obrigatoriedade de compra de produtores locais de um terço dos alimentos para a merenda escolar. Políticas como esta podem ser adaptadas à realidade de outros países, reproduzindo seu impulso emancipador nas comunidades locais, com importantes consequências para a segurança alimentar de toda a sociedade.

A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e o governo brasileiro já compartilham com outros países da América Latina e do Caribe a experiência de compra de produtos da pequena agricultura para abastecer a merenda escolar. O Brasil não reinventou a roda na luta contra a fome. Contudo, ampliou sua capacidade de flexibilização ao articular programas de sucesso dentro e fora do país. Bebeu principalmente da fonte do New Deal, que ajudou os Estados Unidos e o mundo a superarem a grande depressão da década de 1930 ao priorizar a recuperação da demanda.

O êxito brasileiro comprova que a ação do Estado continua sendo uma força importante para redefinir a matriz do crescimento na transição de um ciclo econômico para outro. A recriação em 2003 do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) constituiu um fórum de renegociação dessa nova hegemonia democrática. Ao longo do processo foram executadas mudanças estruturais de dimensões históricas.

Esse conjunto de ações devolveu ao mercado interno de massa um papel central que permitiu ao país sustentar seu crescimento, em meio à contração do comércio e do emprego mundial. Hoje podemos dizer aquilo que na década de 1990 era um anátema: a sociedade só controla seu desenvolvimento quando é capaz de regulá-lo com políticas públicas articuladas de forma democrática por um Estado indutor, em parceria com uma sociedade civil organizada e a participação ativa da iniciativa privada.

É isto que o Brasil continua fazendo, como demonstra a 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que acontecerá entre 7 e 10 deste mês, em Salvador, capital do estado da Bahia, com uma participação prevista de mais de dois mil delegados de todo o país e mais de cem internacionais. Entre eles estão a Frente Parlamentar Contra a Fome para a América Latina e o Caribe, que trabalha a favor de orçamentos indispensáveis para a segurança alimentar.

Incorporar um leque ecumênico de forças à luta contra a fome é o que também faz a FAO com a reforma e ampliação do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, congênere global do Consea. Construir segurança alimentar no âmbito mundial pode ajudar a superar uma crise econômica para a qual não existe, precisamente, uma agenda capaz de pôr fim ao círculo vicioso e paralisante de consumidores que não compram, fábricas que não produzem e bancos que não emprestam.

Quase 80% da humanidade vivem hoje com menos de US$ 10 por dia e destinam a maior parte dessa renda à alimentação. Cerca de 70% das pessoas do mundo que sofrem desnutrição vivem junto à terra, sem dela poderem extrair produtos e renda suficientes para garantir nem mesmo sua sobrevivência. Para a porção majoritária do planeta, portanto, a manifestação mais palpável da crise é o impacto da turbulência financeira nas flutuações abruptas que ela impõe na produção, na oferta e nos preços dos alimentos.

A crise mundial exige respostas rápidas que propiciem a recuperação da demanda e agendas de consenso que estabeleçam linhas de ação para substituir a desordem financeira por um ciclo de expansão, regulado pela justiça social. A luta contra a fome pode ser um dos pilares dessa travessia.

*Diretor-geral eleito da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), cargo que assumirá em janeiro de 2012.

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