Assustadoras a imagem e as ações, comemoradas em páginas de Facebook do
Bope, dando conta de que as mortes de dois soldados estariam sendo vingadas e
sua honra lavada com sangue de jovens corpos negros estirados nas escadarias de
um morro qualquer no Rio de Janeiro.
Há um ditado de origem do continente
africano que diz: “A verdadeira história da floresta só será conhecida no dia
em que o Leão falar”. No caso aqui, Leoa. Mariana Albanese, jornalista, editora
da Página Vidiga!,
ativista de direitos humanos e moradora do morro do Vidigal, no Rio de Janeiro,
nos traz seu relato, próprio de quem sente na pela as contradições e efeitos de
uma política de segurança que tem como principal missão a higienização e o
extermínio.
É longo, mas vale a pena conferir.
Por Mariana Albanese – Jornalista e editora da página
Vidiga!
Quando
vi na TV a informação da morte da jovem policial Alda Castilho, de 22 anos, na
UPP Parque Proletário, me deu um nó na garganta. Um detalhe pegou fundo: ela
cursava psicologia, para tentar ajudar melhor as crianças da comunidade. Doeu,
porque lembrei das policiais que atuam no Vidigal, morro carioca para onde me
mudei em 2011, oito meses antes da pacificação. Assim como a maioria dos que
vão para as UPPs, essas moças são jovens, cheias de vida e acabam realmente se
envolvendo, dando aulas de esportes, música. São responsáveis por cafés da
manhã comunitários. Esses policiais não vêm de bairros nobres, ganham pouco e
com certeza enxergam nos pequenos alguma coisa de sua infância.
Mas não deu tempo de sentir muita coisa, porque no dia seguinte
começou a caçada que acabou com nove baleados no morro do Juramento. Seis
jovens mortos, estendidos no chão de uma escada que poderia ser qualquer uma
das que existem no Vidigal, e os corpos, de qualquer um dos meninos que enchem
suas vielas com a alegria do funk e das provocações bem cariocas. Aê mulek!
A foto doeu fundo, e talvez mais funda ainda tenha sido a dor de
ver na postagem que fiz na página do Vidiga! as frases de sempre, repetidas ao
infinito: “tá com dó? Leva pra casa”. Ou “bandido bom é bandido morto”. Pra
começar: quem sabe quem eles eram? Depois saiu a informação: três sequer tinham
passagem. Os outros três, eram fichados por crimes leves.
Os questionamentos que fiz ali são: se matar trouxesse paz, o
Rio de Janeiro já tinha virado Estocolmo. Simplesmente é preciso mudar de
estratégia, porque essa não serve. E, mais ainda: onde está a chance de mudar?
No sertão, Padre Cícero pregava: “Quem roubou, não roube mais. Quem matou, não
mate mais”. Em nenhum momento da minha vida vi alguém sábio que pregasse a paz
pedindo guerra. Mas comentários, citações bíblicas são usadas para justificar
decretos de morte.
Quando cheguei no morro ainda havia (ainda há) a memória da
guerra, que foi o enfrentamento entre duas facções, entre 2004 e 2006, que teve
o grand finale com sete caras mortos pelo BOPE dentro de uma casa invadida. O
dono da residência, estirado no chão sob a arma da polícia, vendo um por
morrer, tentava dizer que não era bandido. Só se salvou porque sua cachorra o
lambeu, provando que morava ali. Ele estava rendido, e ia ser morto, porque o
BOPE não prende, só mata. Desde sempre, a mesma tática: atirar, depois
perguntar o nome.
A chance de mudar (por conta própria) foi uma das poucas
mudanças que a UPP trouxe às favelas cariocas: como o tráfico armado ficou
complicado, muita gente que não era fichada viu ali a chance de deixar essa
vida pra trás. Vida de traficante soldado, no geral, é curta: ou morre, ou
cansa. É quase impossível ficar um tempo lá e não esbarrar com vários que
cansaram e agora estão na labuta honesta. Você lida com vários destes caras que
a sociedade chama de monstros e quer mortos, mas que agora estão fazendo
trabalhos cansativos e depois curtindo um churrasco na laje. Um dia, um deles
veio desabafar comigo. Ele me contou que simplesmente entrou na sala
do capitão da UPP e disse: “eu tô fora. Mas só vou cair fora se vocês me derem
a garantia de que não vão ficar no meu pé”. E nesse dia ele estava
inconsolável, porque tinha um policial que ameaçava tomar o colete
de mototáxi dele a toda hora. Como ele é inteligente, estava meio que
conscientizando os outros a se organizarem como categoria. E ele me falava:
“fim de semana que vem, tenho que pagar pensão. Já me chamaram pra voltar, mas
eu não vou”.
É preciso entender o contexto todo pra saber qual a animosidade
contra a UPP. Não é só uma batalha do bem contra o mal. Principalmente no
começo, eles enchem o saco dos moradores honestos, botam regras que dificultam
mais a vida das pessoas do que quando estava o que chamo de “a outra gestão”.
Há os turnos. Turnos de caráter. O pessoal sabe se naquela noite
é policial bem ou mal intencionado, e já sabe se vai ou não vai poder dar uma
festa. Porque, sim: além da violência que todo mundo conhece, tem o dia a dia
com o controle social extremo. A filosofia da pacificação parte do princípio
que todo mundo é suspeito até que se prove o contrário. Assim, aglomerações
populares são temidas e coibidas. O baile funk é a primeira coisa a ser
proibida. Nem em local fechado, nem com patrocínio lícito. Há inúmeros casos de
UPPs que acabaram com festas de criança, ou com a galera reunida num bar vendo
o jogo no domingo. Já saiu tiro por causa disso no Alemão. A bendita resolução
013 da Secretaria de Segurança (que caiu agora, mas como não há nada que a
substitua, ainda vemos resquícios desse filhote da ditadura) só vale nas favelas
e dá ao comandante a palavra final: ele simplesmente pode decidir que você não
vai comemorar seu aniversário. Por essa pressão e pelo histórico de
atuação nas favelas, ações contra a PM geralmente são comemoradas.
Em 13 de dezembro de 2012, a UPP do Vidigal agiu com violência
para acabar com a única área de lazer do morro, uma quadra de esportes. Iam
construir a sede deles, com um “auditório que vocês poderão usar!”. Ninguém
queria, fomos pra frente da quadra impedir o trator, que lá estava sem autorização
da Prefeitura, dona do terreno. Começou um enfrentamento, um PM que já não
gostava de mim me deu um tapa na cara, me agarrou pelo cabelo, jogou meu
celular no chão (eu filmava a confusão) e chutou o aparelho. Eu fiquei puta,
voei no pescoço dele e fui presa. E quando voltei pro morro, fui procurada por
muita gente que vinha me contar as histórias de abuso e, principalmente, me dar
os parabéns por ter reagido contra “os canas”. Tive que viajar pra casa da
minha mãe, porque eu não podia passar num beco, que algum cara, às vezes
bêbado, vinha me abraçar. Ninguém queria me atacar. Eles só me achavam uma
heroína, sei lá. E aí, pensa: para o morro, a polícia não é a solução e nem os
traficantes são a solução. Nada melhorou substancialmente para as comunidades
pacificadas.
São muitos tons de favela: tudo varia. Varia da localização,
varia da facção e varia do comando da UPP. Em todos os casos, o que as pessoas
de fora consideram uma libertação do mal, na realidade é um bruta choque
social sem preparo algum. É como se tirassem seu chão. Não tem nada a ver com
salvação. Você vive de um jeito, sob certas regras. Aí chega o Batalhão de
Choque, e bota as deles. Dois meses depois, entra um novo comando, e manda
outras ordens. No começo, todo mundo tinha medo de ser visto falando com
policial porque a certeza geral é de que eles irão embora e as coisas vão
voltar a ser como eram antes.
Minha opinião é que a UPP não resolve nenhuma das raízes do
problema, é apenas um controle social. Os meninos da favela não sabem nem como
a arma foi parar na mão deles. Veio pela fronteira? Veio do exército? E a
droga? Quantas plantações há nos morros? Veja a casa dos chefes do tráfico:
qualquer ator de Malhação tem um apartamento no mesmo nível. O próprio Nem, que
está caladíssimo, deu a real: metade do que ele ganhava não ficava pra ele, era
para comprar a conivência do Estado. E isso não é segredo pra ninguém,
está em todos os jornais, e então me pergunto: por que as pessoas continuam
repetindo, como mantras, as mesmas frases “justiceiras”?
Quando vejo essas pessoas dizendo que bandido bom é bandido
morto, penso no quanto são manipuladas. O morro não gosta de bandido, tanto
quanto o cara do Leblon não gosta. Porque o morador não consegue emprego e
carrega a fama do que não é. E também porque, a depender da facção no poder, a
vida é realmente difícil. Mas eles estão dentro do problema, têm uma visão
mais humana da coisa. No geral, no morro, pra quem é “cria”, a tendência é
ficar contra a ação da PM, mesmo que os mortos sejam criminosos. Porque eles
estão no “caminho errado”, mas são filhos da Dona Maria, jogam bola com você
desde moleque. O morador não gosta do crime, mas não quer ver o vizinho
morto. Eles só querem que saiam dessa vida.
Quando cheguei ao Vidigal, tinha medo de traficante e aguardava
ansiosa a pacificação. Mas, meses depois, eu achava que tinha alguma coisa
muito errada com a sociedade, e não com a favela. Porque nunca tinha visto uma
organização social tão boa quanto aquela. Não havia assaltos, dormia-se de
porta aberta. Eles controlavam o trânsito, o lixo (ai de quem sujasse o
morro!), se preocupam com a comunidade, de verdade – não é só essa moeda
de troca para comprar a conivência alheia. Faziam quadras de esporte, calçavam
as ruas, enfim: é muito mais complexo do que a gente sabe quando tá fora,
ou quando vai fazer tour.
Lembro de uma noite em que voltava de uma festa e encostei numa
grade para ver a lua. Sem querer bati em algo, e um cara falou: “ei, meu
bagulho”. Era um traficante no posto dele. Pedi desculpas, expliquei o que tava
fazendo. Ele parou do meu lado, botou o cotovelo onde o meu estava apoiado e
disse: “a vista daqui é foda, né? Não tem vista mais linda que a do Vidigal.
Fico aqui toda noite, só admirando”. Então me confundi mais ainda: um
“marginal”, “bandido” e “vagabundo” que gosta de filosofar e ver o mar. Ah, se
a vida fosse tão simples quanto o bem e o mal.
E a solução pra essa confusão toda que aí está? É ir na origem
do problema: se as pessoas não querem que um “vagabundo” assalte a “irmã ou
mãe” deles (sempre o mesmo exemplo) deveriam cobrar uma ação global em
segurança. Pegando os grandes bandidos que controlam o tráfico de armas e
drogas, e que não costumam sujar a gravata de sangue, os moleques de havaianas
na favela não vão morrer às centenas, porque eles são apenas a pontinha do
problema. Perto de quem realmente manda, esses moleques estendidos no chão são
tão perigosos quanto o Patati e Patatá.
Faz-se urgente desmilitarizar a polícia – não acabar com
ela, mas mudar sua forma de atuar, e principalmente suas condições de
remuneração e trabalho. O ódio à polícia não é contra o fulano ou o
beltrano que ficam de plantão na sua viela. É à instituição policial, como
um todo, que está sem credibilidade. Ao mesmo tempo, fazer o que tem que
ser feito: tornar, realmente, a favela um território da cidade, com direito a
saneamento, educação e saúde. Mas, pra ser sincera, acho que isso não vai
acontecer. Quem legisla geralmente tem interesse na violência e na
pobreza. Estamos entrando numa guerra civil que vai se estender por anos.
Os assaltos na rua, hoje, não são uma questão apenas de grana. A violência não
diminuiu em lugares onde a pobreza caiu. É uma geração impregnada de ódio.
Não é mais o guri que subia o morro com uma bolsa que tinha lenços e
documentos, pra finalmente a mãe se identificar, mas sim o que vai pegar o
playboy filho da puta que bate palma para o mundo ideal que a Sherazade prega.
Contra o “homem de bem”. Mas ele não tem consciência da razão pela qual está
fazendo isso. Só sabe que há um ódio muito grande dentro dele.
Estou bem desanimada com o futuro. No Vidigal, conta-se os anos
para que todos os pobres estejam fora. O mesmo acontece, lentamente, com a
Rocinha. Acho que só uma tragédia muito grande vai parar isso.
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