O
ministro da Economia, Paulo Guedes, deu início, nesta terça-feira (5), ao seu
mais ambicioso plano de reforma do Estado. Com o simbolismo da presença do
próprio presidente Jair Bolsonaro, a entrega ao Congresso das primeiras peças
de uma série de PECs (Propostas de Emenda à Constituição) e outros dispositivos
legais, representa uma aposta de alto risco. Pelo amplo conjunto de medidas
encaminhadas para discussão no Legislativo, não se trata apenas de um esforço
para reequilibrar as contas públicas e estabilizar a dívida pública. A reforma
proposta tem a ambição de reduzir o tamanho do Estado à dimensão tão mínima
quanto possível.
A ideia, cara ao ministro Guedes, é transferir tanto quanto possível
para o setor privado responsabilidades, inclusive sociais, hoje mantidas pelo
Estado, de acordo com as determinações da Constituição promulgada em 1988, na
saída do período de ditadura militar. Apesar das negativas do ministro, o
modelo tem semelhanças com o implantado no Chile, entre os anos 70 e 90 do
século passado. No Chile, um país de pequena dimensão territorial, com uma
população total menor do que a da Grande São Paulo, a aplicação do modelo que,
na essência, se tenta agora replicar no Brasil, promoveu crescimento econômico.
Mas, ao mesmo tempo, produziu profundas desigualdades de renda e riqueza.
A privatização quase completa dos serviços públicos básicos, assim como
das aposentadorias, resultou em queda acentuada no bem-estar da população mais
vulnerável. Algumas décadas de funcionamento desse modelo acabou desaguando na
explosão social a que se assiste agora. Num país como o Brasil, de dimensões
continentais e população acima de 200 milhões de pessoas, com péssima
distribuição de renda e alarmantes índices de pobreza, as reformas agora
propostas parecem não listar entre as prioridades o necessário aumento de
bem-estar das camadas mais pobres. Mesmo do ponto vista estritamente econômico
– retomada do crescimento e da elevação da renda per capita -, o êxito da
reforma proposta pelo governo Bolsonaro, pelas mãos e ideias de Guedes, depende
da superação de alguns obstáculos não triviais.
O primeiro desses obstáculos é a própria concentração de renda. Não se
conhece modelo econômico mais eficaz na produção de riqueza do que o modelo
puro de mercado. Mas não se pode pedir a ele que, ao mesmo tempo em que eleva a
produção, cuide da distribuição da riqueza produzida. Essa dimensão não faz
parte de seu escopo, nem de suas ferramentas típicas.
Na verdade, o modelo puro de mercado é concentrador de renda. As
sociedades, tendo essa certeza histórica em conta, vêm introduzindo freios e
contrapesos à tendência de oligopolização de mercados inerente ao modelo.
Agências reguladoras e intervenções sociais do Estado, sobretudo nas áreas de
educação e saúde, são alguns dos mecanismos criados para exercer esses freios.
Outro problema da aplicação de modelos estritos de mercados, principalmente em
economias com alta desigualdade de renda e índices elevados de pobreza, deriva
da dificuldade em impulsionar o consumo quando a renda baixa da grande maioria
impõe restrições ao volume total consumido. Essa restrição restringe o
potencial de crescimento da economia como um todo, uma vez que o consumo
costuma ser a parcela mais importante da formação do PIB (Produto Interno
Bruto). No Brasil, por exemplo, o consumo agregado responde por 60% da
composição do PIB.
Um outro lado dessa mesma moeda tem a ver com uma outra dificuldade do
modelo que Guedes pretende fazer valer no Brasil: investimentos. A teoria reza
que, ao tirar o Estado de cena, abrem-se espaços para a ascensão do
investimento privado.
Mas o investimento privado, cuja única premissa é o retorno acima do
invertido, depende do consumo e da renda. Primeiro, precisa que o consumo seja
vigoroso o suficiente para assegurar o retorno esperado do investimento.
Depois, que a renda, atendido o consumo, seja alta o suficiente para garantir
aumento da poupança privada. É da poupança privada, quando o Estado está fora
da economia, que depende o investimento privado. No Brasil, a taxa de
investimento , de 16% do PIB, no segundo trimestre de 2019, encontra-se em
nível historicamente baixo. A expectativa geral é a de que o Congresso
modere as propostas de Guedes. Como na Previdência, o ministro enviou um
programa excessivamente ambicioso e, como lá, o Legislativo desidratou a parte
mais contundente da retirada de proteção social inserida na proposta do governo.
Agora a ambição de Guedes é ainda maior, permitindo prever debates mais
prolongados e desidratações de maior porte. Também como na Previdência, o
projeto do governo tem pontos positivos – na reforma administrativa, em
especial -, outros discutíveis – na reforma tributária e na liberação de fundos
constitucionais -, e alguns fora de propósito – como a desindexação do salário
mínimo para benefícios sociais, que, por sinal, já teria sido vetada por
Bolsonaro.
Um complicador do processo é a relação do presidente Bolsonaro, até aqui
conturbada, com as instituições e o jogo político no Congresso. Sem base
política definida, às turras com seu próprio partido e à frente de articulações
repleta de atritos para a formação de um novo partido, o presidente tende a não
facilitar a tramitação dos projeto de seu ministro da Economia. Mais uma vez,
em resumo, a questão de fundo não é a necessidade de reformas. O problema é
definir quais e com que objetivo.
Artigo de autoria de José Paulo Kupfer
Fonte: UOL
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